Encontro meio ao acaso, sem querer. Dentro de um pedaço amarelado de papel, que um dia já foi algo parecido com uma carta, meio sem brilho, envelhecida.
Foi a primeira, não seria a última.
Tinha 13 anos. Ela, 12. Era inverno e ela, que havia chegado no bairro nas férias de meio de ano, tomava o ônibus duas paradas depois de mim. Com seus cabelos de fios ondulados castanho-claro, presos meio que de qualquer jeito, magra como toda garota de 12 anos deveria ser e metida dentro de seu agasalho verde-vagabundo, subia os degraus me procurando, correndo seus olhos tímidos e talvez tristes por toda a lotação, até me achar.
Eu percebia, claro, mas bobo que era (não que tenha mudado por completo, mas dez anos nos ensinam muitas coisas), sorria apenas. Sorria e a encarava durante quase todos os 15 minutos do trajeto. Por vezes, ela desviava. Por outras, olhava de volta. E então puxava a cigarra e desaparecia em meio à nuvem de estudantes barulhentos.
No ponto seguinte, descia eu. Eu e a nuvem de estudantes barulhentos que estudavam na mesma escola que eu, dois quarteirões após a dela.
Foi assim por mais de uma semana, acho. Mas então um dia, um lugar vago ao meu lado, e ela o ocupou. Sem sorrisos ou encaradas, apenas nós dois, lado-a-lado, olhares congelados em direção a algum lugar que não sabíamos bem onde era, mas parecia ficar há dois palmos à frente de nossos olhos, embora não enxergássemos.
O que eu faço? O que eu falo? O que eu penso?
Nada. Por dúvida, nada. Foi assim desde sempre.
Antes de descer porém, ela, mais esperta que eu, deixou sobre minha perna um pedaço de papel. Olhei rápido para ela, que beijou meu rosto, corou e desceu. Não sem ser alvo de risadinhas e piadas de toda aquela barulhenta turma entre 11 e 14 anos.
O que dizia exatamente não fazia qualquer diferença. Menos de cinco horas depois estávamos numa pequena rua ao lado da escola em que ela estudava. Trocávamos meia dúzia de palavras, corávamos e experimentávamos beijos desajeitados e sarros desengonçados.
No dia seguinte, fomos novamente sentados lado-a-lado. Ela me trouxe uma fotografia, ela na proa de uma barca, olhos apertados por causa do sol, o mar ao fundo. Gostei e guardei.
Aquilo tudo durou uma eternidade: três semanas. Ônibus de segunda à sexta, saída da escola dia sim, dia não. Então ela resolveu que gostava de um garoto da minha rua, não de mim. Ele, um meio babaca e ano mais velho que, vez por outra, tomava a mesma lotação que nós, uma parada antes da minha. Alguns dias depois, era por ele que ela procurava, correndo seus olhos tímidos e talvez tristes por toda a lotação, até achar.
Passei a ir para a escola um pouco mais tarde, e, no alto do orgulho ferido, julguei ter dado o troco certo quando, em pouco tempo, passei a sair com uma menina da sala dela, uma baixinha bem arrumada, de cabelos pretos e lisos, que tinha em seus olhos puxados o maior dos seus charmes.
Isso tudo foi há muito tempo. Depois a vida correu: outras escolas, outros ônibus, não-mais-escolas, garotas novas no bairro e todas as coisas do tipo. Quebrei a cara por dezenas de vezes. E ela também. E as outras também.
Dela, por fim, restou apenas essa foto, e esse papel amarelado, com palavras erradas escritas em letra infantil. As primeiras recordações, não as últimas. De outras, as vezes nada, ou outras fotos, outras cartas (algumas de verdade), livros, CDs, filmes, passagens, ingressos de shows e até um anel e uma pulseira.
Só pequenas bobagens, era uma vez, e isso é tudo o que nos resta afinal. É assim pra todos nós: a sua história também cabe no fundo de uma gaveta.